terça-feira, 22 de dezembro de 2009

OrrealealengO


carcomio sovadobrioche quiasmodeu

ramassou corrabo

loucamentava incumpriveis promicias

hospideia quitinetencasa quartossala suiterrome

erromeutodomeu

oclusobtusa masbencomida emaculadadeira

teudastava manteudafoi

cespedinua ciprestecolmo dulcedebochavamos

subicumes nimbosemanticos

orgasmabundos

osculorida avidaera encompanhia

damadamavel

hidromantico pancometia rubaisgazeis

tefizaguisadeafiz

corfiel cordialetico assintorneime

porenfindoua felizporneia

defenes trastil cuoremio resderelicta

desquiciado

muimequedou arresvalosa

apequenina coisinhalouca

chamadamor

potrebe quialtera beladona

seusolhoscuros reviramaram

possasser tudopode machadodisse

aververemos ocasoclaro equeamoramei

tequisavera

atiamei

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

domingo, 20 de dezembro de 2009

a lógica aberta da poesia

Fotoforma de Bruno Urbanavicius, 2006.

a linguagem codifica um conjunto de regras

sistema de trocas entre signos

ela não diz respeito às cosmicoisas do mundo

mas pretende

qualquer obra tem a pretensão de não ser interpretada

a não ser pelos seus próprios jogos

toda arte precisa trazer a crise para o código

potencializar revelar ausências ignotas desvios falhas

na estrutura

abolido bibelô de sonora inanidade

na poesia não há deus nem sujeito

oculto ou enunciado

o poema invoca um dialeto desconhecido para melhor

se perder na linguagem

poesia é a cifrada mensagem que arrebenta o código

interrompendo a série prosaica

assim como a fala arreganha a língua

alimentando mensagem código fala e língua

a arte aumenta a percepção a poesia desdobra

o conhecimento

das palavras

das coisas

do amor

que há

ENTRE


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

canção sangue-bom de asa rimada


eu canto porque a canção é tudo
não sou alegre nem triste
num dia estou certo, noutro mudo
só o instante existe

desmorono se edifico
sinto gozo e tormento
não sei se fujo ou fico
passo dia, noite, vento

sei que o meu sangue
é quente, encarnado
meu lugar o mangue
o nunca encontrado

no vento eu nuvem
passo
canto a luz, na treva
desfaço

domingo, 29 de novembro de 2009

Haikaí, ai-ai


quem caiu fui eu
meu mundo fez plof!
vaidade, moral
tudim, levou chão

híbris & em pós
nêmesis, pois é:
quem os deuses tão
maldiz, sete nós

ganha, gel anti
germe, gaze e
molho forçado
ponto-falso, ui!

Que lindo
Capacete de pena
Que tem a
Cabocla Jurema

(que las hay, las hay)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

emma thomas



até que seria fácil ser um grande canalha
mas sempre seria preciso
ser grande
ser irmão e irmã adotar gatos fazer versos
isso sim
são coisas grandes demais
querida Sissi desista
de saber si
ou de querer esclarecer
como é e como foi pra mamãe
(Mystérios Gozozos)
funke-se quem puder
baby
deixe-a perder a mente
e virar bicho e voltar a ter cheiros fortes
e novos
e só lembrar do mais simples dos antigos
jogos
porque se é bicho também tem aquela máquina
de lembrar e esquecer fantasmas
afinal foi você mesma que disse
que nunca vou poder parar
de fugir
e me explicou que a fuga é uma arte
de parir umbigos
voa quem puxar por eles e sair do chão
uma vez que quem sonha que voa
está com medo (dos vivos)
e que é por isso que me perco e acerco do centro
em deslocamento
como é certo que todo aquele que aceita dormir
no teu sexo-restaurante
deve ser íntima
vítima da própria verdade
e mesmo que não fosse assim me diga
¿como poderia saber que jamais
em ti
ia encontrar paz
e seguiria assim
andariego
?
sou sempre precário sempre esboço
somente um moço
de recados
esforçado
boçal
e

domingo, 22 de novembro de 2009

ligo louco só pra ouvir a voz dela (homenagem ao poeta Gregório Delgado)

não preciso do dinheiro
me fodo sozinho sei
amolar meio mundo mídia
vesgo vago meu amor via

somos parecidos desiguais
desejo beijo da lôca
doenteucorpoemeu
de amor incompleto
sofronésis sofroeu

CORPOTEU
POEMATEU
SOLIDÃO SE NOTA


grita o gregório
delgado pai de deus
(como pôde simplesmente assim ir
se quem criou)

fui eu(s)?

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

domingo, 15 de novembro de 2009

sábado, 14 de novembro de 2009

você tem razão


eu olho
que tu vejas
onde ele
déja viu

iconoclássica bobagem de quem não tem
cem paus
bilhete único, vale-transporte ou a grana
do busão

o microvestido causa tremendo
rebuliço
agora escrevo o amanhã que já não sei
se há
se houve, se haveria e se será
à vera

ao ir-me indo vou
pasmo
porque o tesão não acha mais a carne, a rima
& a solução

tomo o elevador visionário (do shopping)
parei
de parar, de balançar cem mil vezes o barco
bêbado
da paixão em bicas jorrando ao céu
seus rufos

de que adianta construir pontes entre
os mistérios
e seguir caminhamando
sem sustos?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

o perfume tragicômico da carne



ah, minh’alma mal
acabada
sombra de um maldormido
sonho
por fora risonha e branca
trágica e vermelha
por dentro

ah, minha terra querida
nação moribunda
como é poética a imagem do moço
encontrado
morto dentro do carrinho
de supermercado

quanto vale, ou é por quilo?

amigos, que graça nascer no desespero resignado
de resignação desesperada
aqui o sol não morre nunca
nem nasce o mar sem plumas
berço e tumba
da nossa vergonha (coberta de asas)
libidinal nudez

ah, que idiota sou
compondo versos de água
elegias da neblina
elogios ao rio escuro de água
dormente
esse rio de noites estreladas
e águas cobertas de luar
e cadáveres desovados

meu canto é café coado
na calcinha
canto a luz do céu
de Suely
este meu coração funâmbulo
que desliza por rios
de matéria choca
que sofre e sonha e reza
para formas espectrais

a imperfeição de que tudo é feito
é o que o teu corpo solidário
derrama em mim
nas coisas
por que
passa

pois igual às perifas e favelas
morros, quebradas e montes aprazíveis
da minha terra
me sinto irmão dos que estão vivos
e dos mortos
órfão

humano só sou na dor

quinta-feira, 22 de outubro de 2009



comemorando dia internacional da saúde mental

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

um Vietnã e meio por ano

os meninos estão raivosos
na correria, crescendo, matando
e são filhos meus seus nossos
os carros são furiosos e velozes


Malcolm X, gandola, tênis de basquete
DJ no prato, puxa o sample, faz o scratch
Wu-Tang Clan, Marvin Gaye, 2Pac, Sabotage
CGezinha, 765, AK
47


as meninas viram top
models, poetas
mulher-placa, vampiras lésbicas, operadoras
de telemarketing
calça popozuda, progressiva, Queen
Latifah, gloss


as bombas de fragmentação soltam
pedacinhos
os meninos lá, só filmando
o abismo
os meninos do vapor, tropeçando
no muro
e o que eles não aceitam é tomar no cu
sozinhos

não querem mais
pagar a fatura
se foderem amplo, irrestrito
e geral
na fratura do apartheid
social

sábado, 12 de setembro de 2009

A MÃO DIREITA DO CANHOTO


de esquerda é o burguês culpado
de direita, o burguês ressentido


de esquerda é quem persiste na distinção esquerda/direita
de direita são os que a crêem superada


de esquerda é quem vive no futuro
de direita, quem conjuga o futuro do pretérito


de esquerda é acreditar no Homem
de direita, se proteger da besta-fera


de esquerda é confiar no Estado
de direita, mantê-lo sob controle


de esquerda é querer mudar a História
de direita, reescrevê-la


de esquerda é desejar o progresso
de direita, pô-lo a serviço da tradição


de esquerda é o público gerindo o privado
de direita é, privadamente, digerir o público


de esquerda é o materialista nas idéias e idealista nas ações
de direita é o pragmático do espírito


de esquerda é quem se assume cristão na velhice
de direita, os nostálgicos de uma idade de ouro clássica


mas quando a coisa aperta pra valer,
mão direita e mão esquerda se juntam
e rezam

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

o Abismo e seu Cavaleiro

Conta a lenda que um cavaleiro forte, alto e pouco experiente, a quem chamavam Ferrabraz, por motivos de honra virou noivo de uma donzela que nem conhecia. A família exigia que o casamento acontecesse imediatamente, pois em outra coisa não pensava Focaccia, a princesa.

No caminho do castelo de Payan ele encontrou uma linda feiticeira que lhe revelou que a noiva era feia como a necessidade e chata como uma mula empacada. Nela o cavaleiro não acreditou e, assim, a bruxa o lacrou com um tipo de feitiço embutido numa macumba.

De tudo a bruaca o ameaçou; a felicidade ao lado dela lhe prometia, fama, glória e dinheiro na caixinha. Vendo que debalde lançava rogos e pragas, a bela wicca o transformou em sapo sem respeito, de barriga laranja e fios de cabelo grossos como minhocas.

Cansada de esperar o cavaleiro que tardava, Focaccia em abismo se transformou e a engolir toda a maldade, orgulho e tontice do sapo principiou. Lá-lá-lá-ló-lú-lex-lá-lí. E Ferrabraz o Cavaleiro do Abismo se tornou.


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

AVIFLORA & RIZOFAUNA


― Vó, quer ouvir uma história? Eu leio pra você...

― História do quê?

― Do meu livro, é a lenda de Oxum.

― Xum, é?... menina boba que é você Adelaide, quem deixou você ler esses montes de história de catimbó?

― Meu nome é Talita, vó... que que é catimbó?

― Não sou sua avó, menina, pensa que ainda me engana Duda, você estuda comigo no Des Oiseaux...

― Claro que você é minha avó, a senhora é mãe da mamãe. Você está com a memória fraca, a Dinda que me contou...

― Que Dinda, que memória o quê... em vez de ler bestagem, você devia era se agarrar ao catecismo. As crianças de hoje não têm respeito, só falam asneira.

― Vó, pra quê esse espinho? Onde arranjou ele?

― Pára com esse vó, vó, vó, nem te conheço pirralha! Isso aqui é pra matar formiga, uma espetada, assim, e pronto, menos uma pra aporrinhar...

― ...e por quê a senhora não gosta delas?

― Sabe de onde veio o espinho dona perguntadora?, pois bem, arranquei ele do tronco da barriguda que tem lá na praça... não sabe o que é?, pois é uma árvore que protegeu a Sagrada Família quando fugia para o Egito, os soldados estavam perto e Deus mandou ela se abrir pra esconder o Menino Jesus lá dentro. E por isso ela ficou barriguda e cheia de espinhos.

― Muito dez essa história! Só que... a gente não devia atazanar as coitadinhas das formigas, elas não fazem mal ninguém...

― Você que pensa, esses bichos são odientos que nem gente, ruins como aquela coruja que fica lá me olhando o dia todo. Ói lá ela, não sai do meu pé, a sarna...

― Aquela é a Dona Zulmira, mamãe chamou ela pra cuidar da senhora, porque a senhora é velhinha e precisa de ajuda.

― Quanta parvoíce! Sua mãe paga ela é pra cuidar de você, guria, ela sai pra trabalhar, não sai?, então?, eu não preciso de babá nenhuma... onde já se viu?!

― Foi a mamãe que falou...

― A Dinda disse, a mamãe falou... que criança mais quezilenta. Dá nisso: as mulheres agora têm filhos pros outros criarem, o mundo está todo virado mesmo.

― Ih, vó, aquela ali está se mexendo, tadinha, deve estar doendo...

― Dói nada, só dói em quem tem alma.

― Vó, o que é a alma?

― A alma Deus dá pra quem tem compaixão pelos outros, essas formigas aí, mais vermelhas, as grandonas de queixada grande, são umas desalmadas, elas são escravagistas...

― O que é isso?...

― Tenho que explicar tudo, é? A rainha das malvadas entra no formigueiro, mata a rainha das pequenas e esfrega os pedaços da morta no corpo dela e das outras para o cheiro ficar igual, daí o formigueiro todo vira escravo das malandronas para o resto da vida sem saber de nada.

― Elas podem até cheirar igual, mas são bem diferentes... as pequenininhas não vêem que estão sendo enganadas?

― Não, as formigas são quase cegas.

― ... vó, existe gente escravatista?

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A Estratégia do Vírus



Ela começa pela memória recente, cousas lidas e ouvidas, biblioteca rápida de notícias, curiosidades recentes e corriqueiras ― a inesgotável ganga de faits divers que se adere à falta de assunto ―, mas, logo, mais séria, emendou: não existe profundidade, o que há é uma infinidade de camadas, superfícies derrotadas como cascas de cebola. De modo a liquidar eventuais dúvidas, tirou a blusa exibindo uma curiosa tatuagem, um colibri e um lagarto lascivamente enrodilhados, que lhe desciam do pescoço para o flanco direito. Jogada no espaldar da cadeira, a blusa lá ficou.

Nocaute no primeiro golpe, acusei, este é o risco de enfrentar uma peso-pesado. Homens são incapazes de gerenciar simultaneamente tesão e raciocínio ― falha na barra multi-task, alega o fabricante. Cocei a ponta da orelha para ganhar tempo (um dos meus muitos tiques), buscando a guarda para provocar o clinch, tentando cozinhar o galo até soar o gongo. Com o resto de compostura que me sobrou, respondi que os homens enxergam ao longe e as mulheres são mestras nas curtas distâncias; afinal de contas, preciso lembrá-la quem está pagando a brincadeira.

Vocês vêem as grandes coisas, as mulheres vemos só as pequenas; mas olhamos dentro delas. Não deixa de ser um tipo de compensação pela pequena história de infâmias a que fomos confinadas. Calou-se. Repetiu a operação anterior com a calça. O mundo da narrativa pousou ali entre nós, deslizou as mãos destras e caprichosas pelo cinto de couro, detendo-se na fivela dourada; criando uma falsa expectativa, já que o cinto não a sustentava. Falo da calça baruel que ela vestia, dos movimentos solenes de quem manuseia relíquias, a densidade oculta do corpo a arrastar cios e sinais.

Nisso você está certa, concordei protestando, essa miopia está na base de um certo imediatismo feminino; um manual prático da existência onde tudo se explica por circunstâncias, minúcias e defeitos morais. Fazia que nem ligava para as notas, depositadas uma a uma no criado mudo, embora a dificuldade em se livrar de uma série de alças e faixas denunciasse algum embaraço. Agora era eu que procedia com vagar, aos poucos, gota a gota, sorvendo a beleza na língua, retendo no espírito cada detalhe da devoração. Cabelos presos, pingentes, lingerie e sapatos de salto agulha.

As aventuras, as desmesuras, as ousadias da excitação que antecipa acontecimentos, páginas roubadas pela pressa de se saber o fim. Dissimuladas delícias. Você nunca pensou estar aqui no meu lugar, inverter os papéis? Pra quê?, rebate agressiva, a cada manhã perco a obra noturna, se fui tigre na experiência vivida e quero retê-lo, sobra apenas um rabo de gato. Se um dia sonhei com você, diz enquanto solta a piranha do coque, já passou... Os brincos tinham ido parar no toucador sem que me houvesse dado conta do gesto que os arrancou.

Bem, são taras diferentes, é certo, meu negócio é poder, o seu é dinheiro; a mim interessa a vã glória de mandar, a você, o lucro duvidoso de se dar. Quem poderá saber qual de nós anda menos iludido? Quando sobrevier a melancolia do repouso, quem estará mais órfão, a raposa ou o ouriço? O bustiê foi caindo com um traçado perverso, teimando em se agarrar aos bicos estrábicos dos peitos-canoinha. Assim, vai, perdura essa pena renovada, quero a acritude do ato consumado; as franjas e babados onde aspiro teus fluidos são restos de esquecimento que o despertar teceu para mim.

Mandar, desmandar, transitórios são os ensinamentos sobre o ódio, tão breves são os silêncios da morte... Os vírus anunciam que há uma epidemia de gente, que podemos levar tudo para o grau do inanimado (onde eles transitam de zero a legião), que falta água, que a Gaia faltam tetas para tantos humanos. Predadores no topo da cadeia alimentar, aquecimentos globais pré-históricos, trilobitas (!?) extintos em massa há 250 milhões de anos, etc., de tudo me acusou; do mais importante, porém, ela se desembaraçou em pé: uma dobrada de perna, uma puxada com três dedos e... calcinha no chão. Profissa.

Mais do que tudo, acompanhei os olhares, a palavra que estremece; confidências furtivas dos inconfessáveis informes, imagens não-visuais reveladas no jogo muscular, nos ardis de fera acuada. Fiz este único reparo: por isso é que desconfio da metafísica, essa doença da palavra, ninho de canalhas e poetas, refúgio do pensamento que não sobrevive sem o sagrado. Como os vírus, a linguagem é um código que parasita outros códigos; de repente, acorda de latências seculares, reproduzindo de contrabando sua criptografia invasora. Só podemos esperar que o dia desfaça o que foi capturado pelo trabalho da noite: a vida é um programa muito mais amplo, uma língua maior que a linguagem. Caminhava confiante pelo quarto, a danada insistia em não tirar os sapatos. Tlec, tlec, tlec, tlec, tlec.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

(às vezes) não consigo deixar de responder a um cínico


O Sr. Ferreira Gullar, poeta e opinador de ofício, para o bem e para o mal, tornou-se um interlocutor da questão manicomial; se movido pela sua condição, corajosamente assumida diga-se, de pai de dois psicóticos, ou por suas ambíguas relações com figuras ― estas sim ― de relevo que trabalharam na junção arte/loucura como Nise da Silveira e Lygia Clark, resta por esclarecer. A luta antimanicomial não é, e nem foi, feita por ingênuos movidos por boas intenções; é antes uma das vertentes do movimento de afirmação do direito à diferença de minorias e, mais importante, uma luta pelo reconhecimento da plenitude dos direitos civis destas no âmbito das modernas democracias. Ao contrário do que afirma o nosso Simão Bacamarte das letras, o cérebro não adoece como o coração e os rins, pelo simples fato de ser um órgão muito mais plástico e, digamos, “sob medida” que os outros. Exemplos: se me torno pianista, meu cérebro aumenta a área sensitiva e motora que representa as mãos; dois gêmeos idênticos possuem configurações cerebrais distintas, mas corações e rins iguais. Falta-lhe um curso de medicina para saber disto, Sr. Gullar, como para saber que o fato de haver genes envolvidos na esquizofrenia não faz dela uma “doença hereditária” e ponto. Genes têm complexas interações com o meio; na mesma carga genética, um ambiente favorável pode gerar um gênio e um desfavorável um louco, ou, combinações variáveis de ambos ― o citado Emygdio de Barros ilustra bem esta situação. Alas psiquiátricas integradas aos hospitais gerais são realidade há muito tempo em países atrasados como a Inglaterra e a França, não “hospitais psiquiátricos secretos”. Duvido que o colunista desconheça este fato. Internações fazem parte da biografia da maioria dos chamados loucos, são situações de exceção, necessárias e problemáticas, pois que devem servir para proteger o portador e o seu meio. Torná-las o mais breve e menos traumáticas que for possível é uma discussão necessária. Um fato: “loucos” não cometem mais crimes ou atos violentos que os “normais”; o problema mesmo é que eles incomodam um bocado.

domingo, 19 de julho de 2009

women 'is' losers


A feminilidade foi construída, ao menos no que tange ao mundo ocidental, como um rébus, uma metáfora da sexualidade ― e é neste sentido que considero a psicanálise o procedimento desmetaforizante do feminino por excelência: nascida desta cultura, reabre nela o caminho que vai do sexual ao sagrado e, portanto, ao poder. Conhecemos outros constructos envoltos em brumas, marcados pelo enigma: a Lei, a forma-mercadoria e, de forma geral, todos os modos de legitimação da ordem estabelecida. A minha hipótese repousa na constatação de que esta não é uma associação fortuita, o repúdio à feminilidade tem a opacidade e a permanência das coisas que escapam à influência da crítica culturalista, é conseqüência de uma opção repressora no processo civilizatório, em particular daquele que se configura a partir do monoteísmo e atinge sua maturidade e plena eficiência na civilização capitalista.

A idéia de um estágio matriarcal, ou de direito materno (Mutterrecht), antecedendo ao sistema patriarcal encontra-se hoje francamente desautorizada frente ao registro histórico disponível[i]. Não seriam aplicáveis nem termos como transição, evolução ou recalcamento: a distopia social da mulher é produzida precocemente no processo civilizatório, ou antes, confunde-se com ele. Mesmo no ocidente moderno, que tanto se vangloria das conquistas de direitos privados e públicos, uma relativa isonomia entre os gêneros foi e continua sendo exceção, anomalia restrita a períodos que associaram a acumulação de capital a uma extraordinária sofisticação intelectual[ii].

Se há uma gênese para o fenômeno, esta tem de ser procurada em estado nascente no estabelecimento do contrato social. Os laços sociais, que tão pouco têm de contratual, se constituem nos e pelos discursos que atravessam o espaço comunitário a partir da definição de um principium divisionis; este, submete tanto o mundo natural como o universo social e os códigos neles circulantes a uma partição lógico-política. Não existe formação social, por mais incipiente que seja o seu aparelhamento burocrático, que desconheça critérios de inclusão/exclusão, grupos ou categorias dominantes e dominadas, em que a feminilidade não advenha como um segundo sexo, modelo, aí sim primordial, da construção do Outro antropológico[iii].

O que me leva a uma crua constatação: a crer no que se conhece acerca dos povos sem história, a mulher sai do estado de natureza na qualidade de mercadoria. Não se trata, ao menos a princípio, da condição servil ou de escravidão, mas certamente ela comparece como um bem artificialmente rarefeito e precioso[iv]. Desapropriada de si mesma em benefício da gens no processo de aliança, a mulher passa a ser regida pela ordem econômica, distribuída segundo as regras desta última, revelando, sob a fachada das regras de filiação, os alicerces de um sistema de direitos de propriedade.

Tal como na lição marxista ortodoxa, a mulher/mercadoria, ao circular, se converte em referencial geral pois uma mulher se troca por outra. Dito de outra forma, o mistério da mercadoria e o hieróglifo social da feminilidade visam elidir o mesmo fato: a troca que associa, já traz, ainda que em germe, o incômodo do privilégio, a dominação e a necessidade do seu ocultamento[v]. Instaurando-se um regime de trocas (pessoas, bens e palavras) é necessário que a troca em si seja investida como um aí-desde-sempre, dimensão mítica e extra-temporal que lhe permita situar-se fora daquilo que é efetivamente trocado[vi]. O que na troca deve permanecer velado é o arbitrário do seu fundamento, a marca simbolizante, que faz existir o que não existe, dando-se in absentia. Daí a necessidade da metáfora religiosa, da consagração de um espaço/tempo fundante em que o feminino é sagrado e tabu*.

sábado, 11 de julho de 2009

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O OVO CÓSMICO


A oitenta quilômetros por hora, o impacto faz da superfície do mar uma crosta de pedras. E esta foi só a primeira descoberta do dia. Daí veio a mega-vaca, o tranco daquela catedral de água desabando em cima de mim ― uma sensação igual a nada que já tivesse experimentado antes. Dezoito metros. A onda fechou as mandíbulas de cristal bem nas minhas costas; por um segundo cheguei a ouvir o rugido dela quebrando e em seguida o silêncio me engoliu. Comparar com uma queda livre ou com a ausência de gravidade é pouco: até porque nessas paradas radicais há um certo consolo, já que os movimentos, ainda que sujeitos a condições especiais e adrenalizados pelo perigo, seguem obedientes à nossa vontade. Neste exato momento, apesar do risco físico extremo em que me encontro, não posso fazer absolutamente nada.

“Não é fácil renunciar por inteiro ao controle se estamos acordados”. Foi o sentido das palavras que consegui entender da minha amiga tahitiana, anteontem, diante do meu mapa astral; ela me explicou também que estou atravessando uma fase chamada de Retorno de Saturno. Mas eu não deveria pensar nisso agora. Aliás, o ideal mesmo é não focar o pensamento, apenas aceitar o instante quItálicoe se apresenta; sem raiva e sem apego, como aprendi na meditação. Aprendi muita coisa viajando, deu pra conhecer uma pá de gente incrível em dez anos de circuito. Tenho vinte e nove anos e, até há menos de um minuto atrás, estava sobre a minha prancha e o meu corpo me pertencia ― não era esse boneco de pano que está sendo furiosamente sacudido, girado em todos os sentidos até perder todo o senso de direção e posição.

O colete salva-vidas foi arrancado e o meu pé acertou a testa com toda a força; então, o pânico passou e, como se fosse um programa automático, entraram em ação uma série de procedimentos de emergência que adquiri sem perceber numa vida de contato diário com o mar. Agrupei, quer dizer, consegui me fechar feito um tatu-bola. Ou um feto. Melhor: um ovo. Saturno é o finalizador de ciclos, ele traz a sabedoria retrospectiva que vem junto com a velhice, a dificuldade, a doença e as trevas. Acho que não devia pensar assim, mas o caldo me jogou na região das sombras infernais, no caos primitivo em que as sementes de todas as coisas estão confundidas e misturadas, que me arrasta como e para onde quer, e que torna qualquer decisão pesada como o chumbo que recheia as pranchas curtas dos big riders. Maraü disse ainda que nesta nova fase eu deveria rejeitar a casca e tomar o núcleo, purificar-me três vezes com o sol, o sal e a água, e que isto seria facilitado, pois Saturno viu o seu rosto refletido no espelho de Marte.

O filme passando na cabeça é conhecido, mas parece a biografia de várias pessoas que viviam em mim de forma independente; o primeiro campeonato que venci aos sete anos em Macaé, a saída de casa aos treze, o começo no profissionalismo, o logo do patrocinador, a estréia cabulosa no Qualifyng em Todos Santos, daí, só pauleira: Backdoor, Off the Wall, Mentawai, Jaws, Padang, Puerto Escondido, J-Bay, Pico Alto, Lacanau... um carrossel de imagens nítidas, mas sem as emoções correspondentes. Será que já era, fui? Um estado suspenso? Regredi para o grumo original, o corpúsculo de possibilidades que ainda não sabe se vai germinar, um ovinho sendo turbilhonado por uma lavadora de roupas do tamanho de um prédio de seis andares. Achei o ninho do Simurgh, aqui, na barriga da baleia, as memórias explodem na mente: a caminhada fulminante no acesso ao W.C.T., alinhar nas baterias dos top 45, tocar na banda do Kelly, o casamento na Califa, as drogas, o seqüestro da irmã, a separação. Mas eu devia me preocupar só em manter a apnéia e não pensar nisso agora.

Apenas ficar ligado no presente, passado e futuro são Maīa, ilusões criadas para distrair ou sofrer. É preciso praticar a aceitação resignada, incorporar completamente a passividade e a compaixão plena ― o vazio serve de ponte entre o vácuo e a potência total. A rainha da série me pegou, quando ela parar, precisarei de forças para nadar. Om.

O Pacífico, imensidão desesperadora de tanto azul, me ensinou que qualquer pedaço de terra está no topo de uma cordilheira que se ergue do fundo dos oceanos. Terra, o planeta-mar. O Tahiti é uma dessas montanhas, situada pouco acima do paralelo 20 Sul na Polinésia francesa; uma ilha vulcânica em forma de oito inclinado, na ilhota menor, a sudoeste, fica Teahupoo. Os locais pronunciam ‘tchôpo’ e avisam logo: cuidado com a esmagadora de crânios. As mãos de Maraü preparam suco de noni, uma espécie de fruta-pão nativa que cura tudo, até o veneno do peixe-agulha. O tubo é o satori, a manifestação da divindade no surfe: inspirar, entubar profundo e sair limpo na espuma. Teahupoo é sonho e pesadelo dos surfistas: reef break de esquerdas rápidas, fortes e tubulares que “sugam o chão” do mar, arrebentando numa bancada rasa de corais afiadíssimos. O Teco, com o lash preso nas pedras, vivendo aqui o pior inferno dele.

Agonia e êxtase. O perfume misturado de sangue e de tiare, a gardênia tahitiana; será o meu destino abraçar Iemanjá nos mares do sul? Justo agora que me casei de novo, e o primeiro filho dorme sussu na placenta na minha terceira mulher? Nunca fui um casca-grossa, fui criado na marolinha; quando mudei para Saquarema, respeitei aquelas ressacas nervosas, em Mavericks, Califórnia, conheci o terror. Morar lá, não fez do merrequeiro, especialista em manobras aéreas, um domador das gigantes. Não, não devia pensar nisso agora. Há dois anos, quando voltei a competir e as contusões seguidas mostraram que já não agüentava a puxada competitiva, cheio de contas a pagar, encarei a parada do tow in e pedi abrigo na confraria dos caçadores de gigantes. Rebocado por jet ski, pude descer umas bombas que a remada no braço não teria velocidade para me colocar dentro. O falecido Mark Foo é que disse: quem quer pegar as maiores ondas, tem de estar preparado para pagar o maior dos preços.

Vacilei na saída do tubo, um erro cabaço, perdi visibilidade com a baforada, aquele suspiro que sopra do ventre da onda antes de se fechar. Saí da linha no solavanco, essas morras não têm a superfície lisa, e é por isso que a prancha leva lastro e os pés ficam presos como no snowboard. De repente a casa está caindo, um terremoto vai derrubando quartos, paredes, escadas, corredores e, lá no fundo, a gente vê uma única rota de fuga, só alcançando esta saída é que poderemos escapar da casa ruindo. Sair do tubo da onda é como nascer. Se emergir deste caldo, nasci de novo. Ninguém sabe o que uma onda realmente é; ela dura os poucos segundos de um sonho, dentro dela o tempo se dilata e acelera em momentos-século, e cada instante que chega é um paradoxo que altera os que o antecederam. Dizem que o Universo tem ondas, dobras nas quais se depositaram por gravidade os sóis, as galáxias, os asteróides, os planetas e... nós, poeira de estrelas. In utero. Agora estou preenchido de uma alegria juvenil, uma brancura silenciosa me envolve, experimento o nada, antes de todo e qualquer nascimento ou começo, sinto que estou na primeira fase da luta contra a morte, a entrada no invisível. Não sei mais o que está no alto ou em baixo, onde está a esquerda ou a direita; estou retornando para o zigoto, quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro células, uma mórula, os pólos animal e vegetal, a boca, o ânus, a gástrula, um cordão vertebral, uma noite tépida e feliz, feita de uma matéria clara e envolvente que une o ar e a água, o céu e a terra, uma imagem cósmica, ampla, imensa, suave.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

sábado, 30 de maio de 2009

não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo





Querida Valentina,

Se você está lendo estas linhas, então já sabe que traí miseravelmente a sua confiança e estou respondendo, talvez da pior forma possível, ao que me disse em nossa última conversa. Pese a meu favor o fato de a haver prevenido que faria de você personagem de uma história que ainda não escrevi, e que talvez nunca escreva, como tantas outras coisas que lhe prometi sem saber se poderia cumprir. Você sempre soube no fundo que isto tinha o potencial de vazar para além dos muros da nossa intimidade singularíssima; da sua parte, espero apenas o perdão, da minha, ofereço o mais candente esforço e sinceridade de que sou capaz. Não sei dizer o que para mim foi pior no seu desabafo: ser atualizado nas indignas/heróicas viravoltas da sua relação obsessiva com o Mr. M., ou escutar o horrendo adjetivo que você se autoaplicou: “migalheira”. Mulher migalheira, como tantas outras que há por aí, foi o que você disse. Arrepiante, preocupante mesmo, a ocorrência de dois absurdos na mesma frase: nem você é igual a tantas ou poucas que por aí andam, nem, o que é muito mais importante, se trata de migalhas, mas do exato oposto essa sua história com M.! É humilhante demais. Mandando às favas o meu orgulho, tenho que lhe dizer, a bem da verdade, que esse seu namoro porno-sado-masô é o sideral oposto do pedaço, da migalha, é, antes, sinal de uma imensa fome de absoluto, de um desejo de transcendência descontrolado; o que vocês vivem dista anos-luz do trivial, é uma ligação tão incomum e rara na intensidade que consome tudo à sua volta. Até a capacidade de auto-ironia, até a sua tão preciosa saúde, minha querida. Sei do que estou falando porque escrever é viver essa mesma oximorosa condição: eu sento aqui diante da folha em branco e acredito que me sento à mesa dos deuses, dos anjos, dos reis, mas acabo a noite de quatro, como um vira-lata, a disputar com os sabujos dos empíreos os restos corrompidos que caíram da mesa onde circulava a ambrosia e o hidromel. Não pense que me escapam as contradições em que vou incorrendo ― não estou preocupado com a coerência, estou preocupado com você ―, cara mia, ter a honra de conviver na época de uma grande mulher é ser testemunha histórica de um colossal, maravilhoso, equívoco de carne e osso. Eu sou o seu espião. Você me convidou a isso, como fez de M. um hacker psicossexual entregando-lhe cegamente todas as senhas do corpo e da alma. Ah, como gostaria de vociferar em prosa chula a pusilanimidade dele ― um homem que não tem a coragem de amar a mulher que deveras ama; mas sei, por experiência própria, que a servidão que lhe assujeita agora é a pior de todas: aquela que faz parte do próprio sangue, a que faz de nós aquilo que somos num deslugar noturno do ser. A verdade é que M. usa com habilidade um segredinho sujo do malestar civilizadinho, a verdade é que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda, no jogo do amor, um homem “vale” mais que uma mulher, mesmo sendo um homenzinho cagalhão e looser, mesmo sendo um alumbramento de mulher como Valentina. São as malditas, hipócritas, escrotas regras do jogo social de ontem, hoje e sempre, que garantem que uns lucram, outros são lesados e todos perdem, porque sobre a primeira expropriação se apóiam todas as outras, porque uma dominação engendra a outra, porque, enfim, uma sociedade de libertos seria uma grande ameaça para a estabilidade da globalização, da contemporaneidade ciniquinha e limpinha. E também porque, amiga, apesar de o mundo ser o que é, não podemos simplesmente aceitá-lo pelo valor de face, como não posso simplesmente deixar de sofrer ao vê-la vivendo na pele dessa heroína às avessas, essa identidade secreta, espécie de existência paralela feita de espera vã e epifanias aflitas. Sim, você ouviu bem, eu lhe disse que essa intimidade é tóxica, voragenta; você piscou para o abismo e ele lhe escancarou a goela puante, as insaciáveis fauces. Valentina, darling, pode ser que a vida não seja nada disso que estou lhe dizendo, não me ouça, não lembre das minhas palavras, mas por favor não desista da sua beleza, da indomável liberdade que há nos seus cabelos, nunca deixe de visitar os jardins do mundo delirante onde vivem os Predicados e as Essências, onde tantas vezes adivinhamos os passos um do outro a correr nas caminheiras. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, vero, mas não se pode viver sem um sonho assim.
Bjs,

sábado, 16 de maio de 2009

criar é delicado, criar é uma grande brutalidade


Chama-se moda a arte efêmera que veste o corpo; a arte é inútil ― eu não quero ser artista, quero ser inútil.

Dadoida: moda feita com/por/entre “mentais” para o mundo inteiro.

Daspu, Daspreta, Dasgorda, Dasdoida, daslucro...

“Wishing love or wishing hell, kiss and tell...”, amar e dar, vestir e amar, despir-se do eu. Doeu?

Fashion solidária, psigótica, caps4.org., moeda social, ecoprática, capitalismo esquizofrênico, labuta anti-manicomial, setor 2 e ½, supra-economia, arte 171, etc., etc..

Dasdoida, Parangolé do Corpo Sem Órgãos, Roupa De Encontrar Com Deus, grife do Inconsciente, Salva-Vidas Infindos Infinitos...

A moda é uma Utopia sem moral, uma utopia impossível, já que, nela, pouco ou nada existe de ideal, definitivo e acabado; nada nela dura para sempre, nem é descartado em absoluto. A moda só é o que é por estar completamente exposta à ação do tempo.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mulher com cigarro, técnica mista


bebi raízes

na carne da montanha

dormi

despido por lençóis d’água

envernizado

na tua sala de estar-mogno

não sou de louça!

não tenho margem de manobra

não tenho quadris, nuca, nádegas

nem clarão fugitivo por onde o sentimento siga no encalço

minha cabeça de edemas

agudos

minha face bolachuda de angosturas

kármicas

sete perguntas quem era

sereia, sirene, verbena

veneris die

simultaneamente doce

instantaneamente morno

entregue às margens que estavam ali

enlaçadas ao vislumbre

da sarça ardente

ao corpo mal contado

e narrativo

ao menos deixa

ao menos por hoje

deitar

na cozinha da tua alma

quinta-feira, 14 de maio de 2009

transformei o meu amor em noite para te dar as estrelas


No amor, a multiplicação do nada: dar o que não se tem

Receber do outro o milagre que ele(a) nunca pôde haver

E, neste comércio de impossíveis, construir o mais louco dos paraísos

Quando jovem corria para o abismo, mesmo porque a neblina me cegava

Hoje, caviloso, poupo moedas para a velhice, sentindo que abraço nuvens

Ando às escuras, bem sei

terça-feira, 21 de abril de 2009

sábado, 11 de abril de 2009

o caubói ao entardecer


Um retrato moral resulta mais ambíguo ao poente do que com o sol a pino. Por contraditório que possa parecer, nisto reside a licença poética e um dos vértices do multifacetado “Gran Torino” (2008), filme mais recente de Clint Eastwood, anunciado como o seu último trabalho de ator. Uma luz oblíqua costuma guiar os atos finais dos caubóis de Hollywood: nos westerns, caracteristicamente, este é um combate singular que acontece nos confins da cidade, ao cair da tarde ― fica com vantagem no duelo aquele que se colocar de costas para o crepúsculo.

“Gran Torino”, porém, enfrenta corajosamente as vicissitudes do crepúsculo, em particular os inevitáveis acertos de contas com o passado, o presente e o futuro. O filme começa e termina na morte, sem com isto redundar em fechamento exegético, nem acentuar demasiadamente o registro do trabalho de luto. Embora se preste a balanços de vida, de carreira, de posições políticas (o cineasta é um redneck, republicano e patriota de quatro costados), o plano narrativo não aceita soluções apaziguadoras: Dirty Harry 6 está na pista daquelas perigosas sínteses de que falava Hegel.

Walt Kowalski, veterano da Guerra da Coréia, viúvo que mora afastado dos filhos e netos num subúrbio de Detroit, é o proprietário de um Ford Gran Torino, modelo 1972. O carro pré-crise mundial do petróleo lembra tristemente a arrogância perdida no centenário da Ford, paradigma da indústria do século XX; somos levados a perfilar homologias históricas e biográficas do personagem numa arquitetura da degradação: o declínio físico a se desdobrar no esgarçamento dos laços familiares, que se espelha na decadência urbana de Detroit, metonímia do combalido setor automobilístico norte-americano, símbolo, por sua vez, do outono da superpotência mundial.

Como os irmãos Cohen em “Onde os fracos não têm vez” (2007), o Eastwood-diretor experimenta com a mistura de gêneros, no caso, o faroeste com o drama de tribunal. Na sala de espera da consulta médica, Kowalski finalmente entende: é um imigrante entre imigrantes, maverick ajustado socialmente, ex-combatente que enfrenta agora o tribunal interior da doença, da velhice e da memória. Neste processo ele recusa tanto a mediação religiosa como a reflexão melancólica; se escolhe, uma vez mais, a via da ação, não está em busca de outro punhado de dólares, mas de conferir sentido(s) à sua trajetória.

A conquista do Oeste mítico encenou a conquista do mundo: no corte rápido da edição ideológica, saía o vingador solitário e entrava o marine. Passagem de bastão que John Rambo realizaria, no imaginário da América e do mundo; afinal, supremacia se faz com guerras e guerras se fazem ultrapassando fronteiras éticas. Os filmes de tribunal representam, assim, um segundo tempo dialético do bang-bang: no momento em que a conduta vai ser escrutinizada pela Lei é que ela atinge a letra, ganha estatuto legal, e portanto, social. Jean Genet dizia que era apenas um homem que roubava, depois de condenado, tornou-se um ladrão.

A América (do norte, bem entendido) se tornou o que é por acreditar nos princípios da Lei e da Civilização (ocidentais, bem entendido); a crise atual, ao atingir o núcleo duro do sistema, deixa de ser uma questão econômica e se torna também uma questão de modelo, de visão de mundo. Esta é a condição pós-moderna descrita por Lyotard, falindo os laços de nacionalidade, as fidelidades étnicas e clânicas, em suma, as “grandes narrativas”, confiamos que a imagem fragmentária do cinema realize a façanha integradora, o terceiro tempo em que a pulsão forja a representação. Monco não é Rambo, Eastwood não é Schwarzenegger, mas o Gran Torino do filme é “verde”, como os carros que Obama deseja para a América.

Kowalski tem dificuldades com a nova ordem, mas não vai contra o inevitável: não há mais dois exércitos marcando o mapa com vermelho e azul, o que temos é um território instável tomado por gangues. Os créditos descem com o caubói cavalgando sozinho rumo ao horizonte.


domingo, 29 de março de 2009

o que falta à verdade para ser dita


desdobramentos fugidios de um pequeno território livre:

nunca descobri o que eram as tais “conversas de adulto”,

até porque nunca conheci realmente um “adulto”,

as pessoas que conheço, com o passar do tempo, e quando têm sorte, apenas

envelhecem, como as frutas que, ao invés de amadurecer, apodrecem diretamente;

muito poucas pessoas se tornam melhores do que a criança que foram,

a maioria acaba prisioneira de algumas, ou de muitas, das manias que inventou,

deve ser por isso que nunca encontrei pessoalmente um “sábio”,

embora conheça gente que é especialista nas mais variadas coisas;

na melhor das hipóteses, chega-se a conhecer muito sobre um pedaço do mundo,

mas desconheço quem saiba viver; aliás, a vida é um daqueles temas em que todos

falam no escuro, parece que quanto mais importante um assunto é, mais se fala dele

e menos se sabe também ― mas é MUITO deselegante mencionar este fato

em conversas sociais; o pouco que aprendi sobre “ser adulto”, diz respeito a fingir

que se sabe o que se está fazendo, ou dizendo, e para onde se está indo, curiosamente,

o fato de ninguém saber nada beneficia mais os conservadores e hipócritas do que

aguça a necessidade de mudar
; quando guri, no caminho da escola volta e meia cruzava

com a louca do bairro, a Lurdinha da Fausta, dizia os meses de floração de cada

planta, nomeava as espécies de cambaxirra, os montes, os córregos, cão, gente ou gato,

como sabia, se não trabalhava como os adultos e não ia à escola como as crianças?

“eu pergunto”, respondeu-me

quarta-feira, 25 de março de 2009

sábado, 14 de março de 2009

Todo Cuidado é Pouco com os “Operadores Simbólicos”!

ilustração de Bruno Urbanavicius

No meio de uma entrevista a um repórter francês, na maior cara lavada, John Kenneth Galbraith saiu-se com esta: “no atual estágio da tecnoestrutura capitalista, uma empresa como a GM não precisa buscar primordialmente a maximização dos seus lucros”. Passados 39 anos e com a tsunami econômico-financeira devastando o planeta, incluindo a própria General Motors, as palavras do conselheiro de John Kennedy e professor de Harvard não soam irônicas e/ou proféticas ― são (e eram) mentira pura. Aquele tipo de bravata arrogante de quem deitou banca demais, falação demais, para um monte de baba-ovos acríticos. Nos anos 60-70, J.K. Galbraith era “o” cara: dava pitaco sobre moda, economia, política, comportamento e até, se bobeassem, na escalação do meio de campo do Olaria.

Pulando para os 80, um outro guru da economia sacou do colete a “Terceira Onda” da civilização humana; na esteira da Revolução Agrícola e da Revolução Industrial, Alvin Toffler prognosticava a Era da Informação, em que predominariam as empresas de serviços e os profissionais que ele chamava de “operadores simbólicos”. Quem seriam esses obreiros do virtual? Nada de tão novo assim: aquele tipo de gente que não fabrica um prego, não aperta uma arruela etrusca, nem é capaz de compor um pagodinho em hebraico clássico, profissionais cujo trabalho consiste primariamente em operações abstratas realizadas sobre bases de dados simbólicos e que, acrescentemos, se c... um monte para as conseqüências práticas das mandracarias que fazem.

Ao contrário da patranha galbraitiana, a ideia de Toffler faz algum sentido, muito embora uma definição tão ampla acabe por incluir quase qualquer atividade humana, por exemplo, o projetista de uma sonda espacial, o desenvolvedor de Linux, o estilista de uma grife de alta costura, o anotador de jogo do bicho e o menino da pipa que sinaliza a polícia para o traficante, estão manipulando códigos, signos e meta-linguagens com inúmeras camadas de sentidos e vários graus de abstração ― o que os qualifica, portanto, como “operadores simbólicos”. Duas categorias destes profissionais etéreos, no entanto, vêm chamando a atenção hoje em dia, o “povo do mercado” e os “formadores de opinião”. Deles aguardamos as mais deslavadas mistificações.

Os tratados de alquimia diziam que o que está em cima é como o que está em baixo, tal como o que parece à direita, pode estar à esquerda e vice versa. Um presidente da federação dos bancos (concessão pública), que pega dinheiro do governo e empresta a juros 10 vezes maiores e não quer ser chamado de sacana, pode muito bem ser um dirigente esquerdista ao molde soviético. Já um sindicalista que gere um fundo de pensão de uma mega estatal, na verdade é um big player... do mercado! Diante do atual estouro das Bolsas, o povo do mercado vai insistir em potocas como “o estouro de bolhas especulativas faz parte da dinâmica capitalista”, “as bolhas são cíclicas e geram riqueza no processo”, ou ainda, “o capitalismo é melhor que suas alternativas porque sobreviveu a elas” e assim por diante. Já os ideólogos da Bolha podem encampar a tese de que houve no Brasil (e já estaria encerrada) uma tal de “ditabranda” militar.


Ou seja, a quartelada dos milicos brazucas teria sido soft comparada com nossos hermanos (hahahaha). A Bolha (da fama) e a Bolsa (de valores?) estão com problemas de, digamos, densidade ontológica ― todo cuidado é pouco.

sexta-feira, 6 de março de 2009

um lugar entre

foto de Maria do Carmo Valente

sábado, 7 de fevereiro de 2009

sou parente de tudo que existe



o sono não passa

........................................a cobra despeja

de uma distração

.........................................seu veneno

tola

.........................................no Paraná-Açu

(fuga de sentidos)

.........................................as águas dissolvem

durante o sono

.........................................o vitríolo

uma das várias

..........................................que não polui

pessoas que somos

..........................................o grande rio

descansa

...........................................os igarapés ou o mar

enquanto os outros

...........................................porém a peçonha fica livre

velam

...........................................do peso amazônico

mas então: quem sonha?

............................................de ser veneno

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

gregorio delgado




ciencia descabida



eu estou tentando escrever tentando e conseguino eu ja sou um homem velho mas tem plano de menino cabeça de cientista presa no proprio destino as vezes tem esplosão mas o meu calculo é fino cabeça de cientista presa no proprio destino sou escravo da lembrança até me falta o tino gosto das coisas rimadas por isso agora eu rimo enquanto meu corpo chora minha alma tá sorrindo enquanto meu gado berra meu cachorro esta latindo enquanto eu to pensando o ladrão rouba meu tino e eu olhando pro céu e a benção do céu caindo encontrei a eternidade no passado conseguido sou gregório delgado e desse jeito termino.

domingo, 4 de janeiro de 2009

por quê o Pedro Bial tem aqueles dentes?

Desenho de Roberval Salles

sim porque TODO MUNDO na tv tem os dentes não brancos mas reluzentes de alvura na tv tudo brilha e cheira a novo a não ser quando entrevistam os tais “populares” daí que a pergunta poderia ser más bien para quê os mantém assim e o mais irritante é saber ou antecipar que a resposta é do tipo carta roubada está literal e constantemente na nossa cara e no entanto esquecemos por descuido preguiça lassidão que aderem ao pensamento como a velhice se deposita na pele nos ossos e articulações e progressivamente incapacita para a conversação com as crianças aliás estas talvez respondessem com a sabedoria fabular: é para te comer melhor mas então eles (os dentes) não seriam de Pedro mas do Lobo e dentes de lobo são pontiagudos separados e bem brancos em contraste com o corpo o pêlo e a floresta negros ― é sempre a Floresta Negra nas ilustrações não não são antes dentes de rato: irregulares sujos pequenos mas singularmente poderosos os dentes dos famosos são grandes e limpos como a nos recordar que para chegar lá eles (os bacanas) precisaram morder muito aniquilar muitos então percebe-se o alcance da mensagem: é de comer gente e ser comido por gente que se trata canibalismo é a palavra já o canibalismo-ato tem a ver com quebrar para conhecer estraçalhar para conservar ambivalência com o amor devorado ódio ao objeto ao laço à relação àquilo/àqueles que amamos filiação e identidade alimentação incorporação e despedaçamento estaremos condenados a destruir tudo que amamos (?) outra possibilidade seria pensar num certo charme europeu europeus têm dentes péssimos é fato sabido bem como os acadêmicos mas nestes o buraco é mais pra dentro: o bafo intelectuais acadêmicos têm bafão é outro clichê na certa porque comem muita coisa ruim (muita gente também boa ou ruim) os dentes ficam sujos devido aos restos aos detritos que a comensalidade indiscriminada acarreta essa história de viver com podreiras na boca que diz masca expele engole tritura regurgita cospe mói deglute rilha engulha o que não temos coragem de encarar nem em posto de estrada tresnoitados de cansaço e sono e impaciência e fome rodoviária de chegar ao destino o ser humano é bastante incoerente e talvez seja isso que o Bial está berrando no vídeo nem tudo fecha nem tudo é perfeito: o que eu acredito não bate com que eu digo e bate menos ainda com o que eu faço os humanos não podem ser inteiramente coerentes sob risco de desabamento central do ser o equilíbrio a plenitude a justiça a harmonia são fatalmente cansativos como a ilha de Circe desperta a nostalgia da ilha familiar imperfeita dos rancores e intrigas do ódio aos seus ao qual sempre retornamos desterrados na própria casa édipos/odisseus já que o que está perdido volta como fantasma desde que se tenha fodido tudo antes e desta forma o CANIBAL MELANCÓLICO é um assassino do tesouro que custodia daquilo que vai manter presente a partir da ausência que então não é mais perda mas retorno alucinação compreensão do outro do diferente desde que o possa matar comer porque na tv só me interessa o que não é meu só existo onde não estou quase posso ouvi-lo dizendo lá a verdadeira vida lá na telinha dou carteirada ― trabalho na Grobo ― no logo me espia um olho ou globo dentro de uma tela com outro olho-globo dentro portanto sou prisioneiro do espelho mas o espelho também é meu prisioneiro “fora rede globo o povo não é bobo” e naquele instante apostava sinceramente numa vida num país melhor e por isso a emissora do plim-plim sacou a levada do Bial a espiadinha básica não adianta esconder a vocação desse negócio é mostrar escancarar tudo desde que somos modernos vivemos aglomerados em massas desde a aurora da humanidade socializamos em torno do espetáculo a fala encantatória da poesia vidiota Bial é o cara o oficiante do casamento sem nós do exibicionista com o voyeur um fantástico show da cena cínica what you see is what you see meu sonho é o seu o seu céu é o meu eu sonho o que você quiser que sonhe o Olho pode ser a boca-cloaca pública testemunha do corpo no qual vivo como recheio imagem que me presentifica uma imagem é o que como com os olhos e absorvo com os dentes de uma barriga vazia ― de sentidos we the people na multidão não há só anulação das diferenças em benefício de um líder o que aconteceu é que os líderes deixaram de fazer diferença eu dizia que o Bial tem dentes de rato e o rato é o Delator no que insisto: a nossa relação doentia com as palavras dá-se toda e nenhuma atenção a elas por exemplo os dentes e o jornalista/escritor/cineasta não estão lá por acaso o Grande Irmão não é o Grande Pai que nos fez à Sua imagem e semelhança o Grande Irmão é a soma imaginária das dessemelhanças do semblante de cada um nós o fizemos e quisemos assim como é e ele só faz o que mandamos que faça Pedro Bial Hebe Camargo Sílvio Santos não são pessoas como nós ELES SÃO AS NOSSAS PESSOAS somadas individuadas empilhadas aglutinadas caras que odiamos amar bocas que amamos odiar a democracia abole as aparências decentes da representatividade na democracia os representantes são pássaros na gaiola de ouro da representação atores à deriva num hipertexto móvel na pós-modernidade o Outro é o travesti do Mesmo na pós-modernidade o rei é um escravo que sente saudades da guilhotina ― única liberdade que lhe resta ― nela o povo opressor é livre e soberano para comer quem quiser