sexta-feira, 15 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 2


― Iuri, seu tio não gosta de ver você desse jeito. Você faz um bom trabalho no computador, como quando recebeu o aviso de que a represa da Ponte Nova tinha estourado, mas não pode ficar o dia inteiro ligado nisso. Não há mais tempo pra ficar banzando, descubra o que é a coisa mais importante de todas na sua vida e faça o que tiver que fazer.

― Hideo-san, não tenho feito outra coisa... estou atrás dia e noite da única pessoa que me interessa. A Yuri, tio... a merda é que a internet agora passa a maior parte do tempo fora do ar...

― Yuri? Ah, sim, Yuriko! Ela é da família Tomome, não?... hmm, aquele pessoal lá como é que ficou? Lá também se arruinou uma barragem, não foi?, a Ribeirão do Carmo...

― Agora tenho uma informação, ela foi vista aqui perto, a leste de Ribeirão do Pote...

― Hmm, aquilo lá tá tudo alagado, a rodovia submergiu e o mato virou várzea... peraí, acho que é lá que estão muquiados aqueles vagabundos que cataram nossa colheita de milho, a gente podia chegar lá e tomar deles de volta ― Hideo calculava unir o arriscado ao útil, quer dizer, arriscado para o sobrinho, porque não havia garantias de encontrar a menina, mas útil para o seu grupo, onde vários homens estavam precisando descarregar sua testosterona contra um inimigo externo antes que se voltassem contra a própria comunidade.

Partiram cedo na manhã seguinte. O grupo reunia doze homens armados, três mulas e botes infláveis.

Por volta das duas da tarde, após descerem a estrada do Paraitinguinha, avistaram o talude derruído de uma pedreira que ficava contígua à rodovia Rolim de Moura. Um capiau passou com uma rede de pesca e um saco de juta. Cuidando para não serem vistos, os Fukushima resolveram cortar o caminho do pasto subindo por uma picada até o topo do morro, onde seguiram por três quilômetros de encosta até uma espécie de anfiteatro de erosão natural no meio das colinas. Um córrego descia morro abaixo partindo de uma garganta, parando ali como que para respirar numa lagoa escura e ampla rodeada por pedras. Cada um parou também para se refrescar, os homens se embrenharam na vegetação atrás de uns preás, o chefe da expedição sentou-se numa pedra à beira da lagoa e acendeu o cachimbo enquanto observava o sobrinho.

Um barulho na folhagem atraiu a atenção de ambos por um segundo; quando se viraram, na margem oposta havia um sujeito com uma cano serrado, à esquerda de onde Iuri se encontrava e bem de frente para Hideo. O cano da espingarda era um túnel escuro e indecifrável mirado diretamente neste, que permanecia cachimbando com toda a calma do mundo. Ninguém dizia nem fazia nada; os três apenas ficaram ali, sem se mexer do lugar, fixados no silêncio opressivo. Um gavião-carijó saiu do arvoredo batendo rapidamente as asas, até que ganhou altura ao pegar uma corrente de ar quente; lá do alto, soltou um guincho agudo que cortou os ares como um arrepio. Iuri entendeu que deveria entrar em ação para o tio escapar da cilada; jogou-se para trás do tronco de uma árvore disparando o revólver calibre 32 na direção do cara no outro lado do lago.

Hideo mergulhou para se esconder na mesma pedra em que estava sentado; ele ouviu o estampido dos tiros do sobrinho serem engolidos pelo da espingarda, que soou como um canhão ribombando nos morros da vizinhança. Sobre a sua cabeça, ramos de árvores e arbustos se rompiam como papel rasgado, lascas das pedras alvejadas se soltavam ao seu redor com um som metálico, a superfície da água verrumada por balas perdidas. O tiroteio generalizou-se num alvoroço fumacento e furioso; seus homens disparavam apavorados, fogos vindos do meio da capoeira respondiam, os projéteis passavam assobiando, perdendo-se no meio do mato ou escavando o lenho dos troncos com estalidos secos. Após um tempo, que pareceu durar horas, mas não passara de vinte minutos, a balaceira cedeu completamente. Pouco a pouco, os Fukushima se reagruparam em torno do chefe. Iuri tinha desaparecido.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Os Fukushima - parte 1


Supunhetemos
que de repentelho
o mundo se escabaçasse,
o que siririca de nós?
Nádegas, nádegas, nádegas...


Nos últimos tempos, essa cantilena, vinda de um ponto longínquo da infância de Hideo, irrompia-lhe no pensamento a qualquer hora do dia ou da noite; às vezes trauteava-a distraidamente em momentos vagos, até que se desse conta de que o fazia e parasse encabulado. Não tinha muitos ultimamente, os tais momentos ociosos, que lá isso não podia se dar a muitos desfrutes reflexivos; era uma situação muito delicada no mundo inteiro, e ele, na condição de homem de ação, tinha sido chamado a assumir uma liderança que lhe fora negada nos tempos da bonança. Se no plano coletivo a conjuntura era catastrófica, pessoalmente, Hideo experimentava, aos cinqüenta e seis anos de idade, uma inédita sensação de realização e plenitude: estava tão ciente como os outros de que ia morrer no cataclismo que se avizinhava, mas o reconhecimento tardio lavava-lhe a alma.

Tudo começara há quase um ano, quando a notícia começou a escapar dos meios científicos; a princípio, houve discórdias na confirmação independente dos dados, até que finalmente a comunidade dos astrônomos entrou em acordo que um calhau de cem quilômetros de diâmetro estava em rota de colisão com a Terra. Logo ficou óbvio que a espécie humana não sobreviveria ao impacto: o trambolho era dez vezes maior do que aquele que havia exterminado os dinossauros. O SKA, Square Kilometer Array, maior radiotelescópio do mundo, situado na África do Sul e o LINEAR, Lincoln Near-Earth Asteroid Research, consórcio da Força Aérea Americana, da Nasa e do Laboratório Lincoln do MIT, confirmavam que duas pedras gigantescas haviam se chocado no cinturão de asteróides que fica entre Marte e Júpiter, desprendendo um bólido batizado sarcasticamente com o nome do deus Maia dos sacrifícios humanos: 2012 Buluc Chabtam.

Hideo Fukushima meditava sobre a balbúrdia que era finar-se o mundo de maneira tão sem sentido, uma desorientação em escala planetária se instalara: as instituições, os freios éticos, as religiões, tudo despencara num fenômeno global e simultâneo em que se assistiu ao derretimento dos laços sociais no decorrer de poucas semanas. O Apocalipse com hora marcada da ciência suplantava os pânicos milenaristas das profecias, mandando o esmalte civilizatório para a casa do chapéu; as pessoas abandonavam suas casas, suas famílias, as cidades ficaram desertas, bandos erráticos em busca de alimento tornaram-se a principal ameaça. A paralisação da infraestrutura energética levou à suspensão geral do transporte e das comunicações, o mundo voltava a ser local. Toda a cultura, tecnologia e desenvolvimento se mostraram impotentes para deter o emissário cego da morte e do caos; seria castigo divino por conta da pílula e do casamento gay, os séculos de queima de hereges e combustíveis fósseis, ou apenas a indiferença moral da natureza?

Em tempos tão confusos, o clã dos Fukushima ocupava um território privilegiado no cinturão verde da Grande São Paulo e dispunha da tecnologia adequada para subsistir, já que havia se estabelecido entre os principais fornecedores da região horti-fruti-fungi-flori-granjeira de Salesópolis. A extensa rede fluvial, as matas de proteção a mananciais, a experiência com agricultura orgânica e a disponibilidade de enxofre, carvão e salitre ― ingredientes da pólvora ―, fazia daquela uma região auto-suficiente, desde que ali houvesse uma comunidade disposta a defendê-la. Hideo foi o primeiro a perceber isto e a convencer todos de que se se espalhassem, nada mais os juntaria; morrer por morrer, quanto mais tarde, melhor, e, permanecendo juntos, não estariam à mercê dos roubos, assassinatos e estupros das gangues nômades.

A mãe e os cinco tios, que o haviam preterido na sucessão da empresa familiar que fundaram, aplaudiam-no agora que, por um golpe do destino, ele tomava as rédeas e mantinha a todos unidos em torno de um objetivo comum: sobreviver enquanto desse. Como líder, sabia intuitivamente que a saúde de um grupo depende do bem estar de todos e cada um e por isso é que andava tão preocupado com as atitudes de Iuri; o sobrinho era o geninho da informática, passava o dia conectando-se aos fiapos de conexão que alguns abnegados ainda conseguiam manter na internet, mas o emburramento sorumbático do garoto ficava cada vez mais evidente. Era o tio querido do garoto, que o escolhera como padrinho da perda da virgindade; Hideo levou-o à zona e o apresentou a cada uma das putas pelo nome, como cavalheiro que era.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

despertar

mesmo que as idéias e as imagens faleçam

em descrever

assim é a imersão no instante-distância que

sempre esteve ali

como se nos tirassem um capuz

da cabeça

que amplitude infinita que alívio

ver o que não foi visto antes como

se a calota da cabeça explodisse e

um bando de pássaros revoasse para fora do

ninho escuro

de repente não há mais causa nem efeito

e tudo apenas se reflete no espelho

nada

pode amarrar ou desamarrar não há fogo

nem fogueira

as coisas como elas são transparentes

bruxuleios ilusórios do

desejo que não mais te fustiga/escraviza

você

apenas está no irremediável fluxo até

mesmo as metáforas que te dei estão

fundidas num

todo sem margens abrangendo o

estado de compaixão a sabedoria as bênçãos a claridade a

ausência

do pensamento este é o despertar do sonho que sonhava

a si próprio

um profundo senso de humor brota de dentro e você

sorri

divertido com a inutilidade do que até então te

preenchia e

só agora te dás conta que inexiste algo além

a procurar nada mais a ser

esperado