sábado, 31 de julho de 2010

o homem que atrasava

― “... no inverno de 1913, dois meses depois de conhecê-lo, Anna vai procurar Aleksandr em sua casa...” ― Luna repassava com ele capítulos inteiros da sua tese de doutoramento em letras russas.

― Essa mulher está de xale negro em todas as fotos ― Bartô queria era dizer que aquela poeta transformara a vida sexual deles numa prosa insípida.

― Mas também... ela foi proibida pelo pai de usar o sobrenome dele, teve o primeiro marido fuzilado pela Revolução, o terceiro morto num campo de concentração, o filho preso...

― “Não sou tão terrível que ingenuamente possa matar; e nem tão ingênua...” ― as coisas lhe corriam bem na corretora, moravam numa cobertura, mas a mulher não saía do computador nos últimos meses.

― “... que não saiba como a vida é terrível”, você já decorou... ― andava preocupada com os atrasos dele, sentia a culpa aguilhoá-la a cada vez que o via levar o jantar esquentado no microondas para a sala de TV sozinho.

***

― “Quem se encontrou com quem, quando e por quê” ― toda vestida e pintada, o chinelo de feltro.

― “...quem morreu e quem sobreviveu e quem é o autor, quem o herói” ― Bartô não conseguia ver mais nada; aquele corpo de bem mais de uma centena de quilos revelou uma nesga de coxa branquicenta, fios de veias azuladas desciam para a panturrilha.

― “... e que necessidade temos, hoje, desse discurso sobre um poeta” ― arrepanhou o tutu da saia como se fosse dar um passo de dança. Desde que ficou claro que além do sexo não tinham outro assunto, falavam assim, recitando.

― “... e um enxame de fantasmas?” ― desolado, deixou-se cair no sofá. Dois meses depois de a ajudar a carregar as compras na garagem, tinha ido ao apartamento dela para tomar o café prometido. O café pelava de tão quente.

― “Ninguém bate à minha porta, o Silêncio mantém silêncio” ― preparou dois drinques e os trouxe para mesinha de centro. Notou que ele ainda não relaxara.

― “... e o espelho sonha apenas com o espelho” ― ela sentou ao seu lado. Sentia-lhe o perfume cálido das carnes graxudas, a massa de ser o envolvia com o balanço nutrido dos seus fluxos e refluxos incontidos. Já na primeira vez que foi lá se atracaram.

― “Hoje, tenho muito o que fazer: devo matar a memória até o fim” ― foi até o quarto, voltou só com o roupão entreaberto deixando adivinhar a lingerie vermelha. Havia pouco tempo, ele logo teria de ir para casa, no bloco B do mesmo condomínio. Não sabiam o nome um do outro.

― “Minha alma vai ter de virar pedra, terei de reaprender a viver” ― saía mais cedo do escritório para trepar com a sua vênus esteatopígia no final de tarde. Quando ela lhe pediu que conversassem sobre alguma coisa, ele só conseguiu repetir os versos da outra. Anna Akhmátova lhe devolvia assim o corpo roubado. Bebeu de uma talagada.

― “Mas um sonho é também algo de real” ― caminhou na direção do quarto, parou recostada ao batente ocupando toda a porta. Soltou os cabelos presos a um lenço de seda. Agarrou-a por trás, falto de a poder abarcar por inteiro. Ela rinchava rouca égua selvagem, sucuri lesa no banhado.

― “O mistério de um não-encontro tem desolados triunfos” ― deu-lhe beijos melados, mordiscou-lhe a saboneteira, a barbela e os três queixos, titilou a orelha miúda, lambe-lambendo os bicos das mamas suntuosas enquanto arrancava o paletó e os sapatos aos tropicões.

― “Frases não ditas, palavras mudas, olhares silenciados” ― a calcinha apertada ela deslizou sobre as coxas rubicundas; o chorume orgânico do seu unto de foca se misturava a ele, que se debatia agoniado embaixo dela na cama queen size.

― “Tu me inventaste, não há um ser assim e nem poderia um ser assim haver” ― o empuxo da matéria pingue o arrastava para as profundezas de um pesadelo gozoso; delirava ao léu por mares de delícias gelatinosas, seu pau e sua alma sugados pelo úbere da mãe d’água suspirosa e gordã.

― “E a tudo isso chamaremos de amor imortal” ― ela sempre soube que ele voltaria para a mulher, não se enganava, mas ainda queria acreditar que se encontrariam num futuro inacreditável quando as forças do mundo se esgotarem.

***

― Meu bem, tenho uma notícia maravilhosa: marcaram a data da defesa! ― Luna viu quando o rosto dele faiscou de desejo, ficou encabulada com olhar que a percorreu de cima a baixo. Tinha engordado nos últimos meses.

a vida depois

Qualquer tragédia que nos atinge tem efeitos imediatos e duradouros; morrer, em certo sentido, é sempre traumático, já que o mais difícil não é sair da vida, mas aprender a morrer. Pode até parecer um truísmo, uma tirada acaciana, maiormente no meu caso, que tive a bênção da chamada boa morte: depois de 83 bem vividos anos, morri como nasci, balançando na rede. Sim, sou um defunto-autor, ou um autor-defunto, se preferirem; antigamente, só os gênios, os gatos, os loucos e os médiuns davam voz e vez aos desencarnados, hoje em dia, com a computação quântica, tudo é possível, até fazer o nada agir sobre um circuito integrado. São os mistérios corriqueiros da informática.

Não dêem ouvidos a essa peta de “narrador inconfiável”, a passagem de plano despe a alma de certas mumunhas que tanto atravancam vocês, que estão aí. Por exemplo, não vou lhes esconder o destino que, cedo ou tarde, nos unirá: assistir da primeira fila o esbulho da família no pós-óbito imediato; minhas filhas tiveram de azeitar com moeda sonante os gonzos da máquina funerária a cada vez que ela se moveu na opereta bufa que foi o meu sepultamento. Morrer não é fácil, mas se aprende, viver é que é uma aventura sem garantias. Sinto muito se ofender crença ou teoria de quem leia estas mal acabadas linhas, mas aqui se trata de uma tanatografia, portanto, nada de dourar as infâmias com a tinta da melancolia, nem de esboçar as baixezas com a pena da galhofa, vou, isto sim, escarificar as cascas de cebola do vivido em primeiríssima pessoa.

Fiz carreira vitoriosa como promotor e atingi a Procuradoria de Justiça, embora tenha me faltado munição para chegar a desembargador; só agora, no entanto, me dei conta da enorme disparidade de status legal entre o nascer e o morrer. Neste belo e pujante país, nasce-se privadamente (se meios os genitores houverem), mas só se morre nos braços descuidados da coisa pública. Cometi a molesta indelicadeza de morrer de madrugada, o que complicou bem certos passos, como obter atestado de óbito do médico tratante e garantir que o rabecão da prefeitura viesse retirar meu presuntivo corpo a tempo e horas de um condigno velório. O médico, amigo de uma das minhas filhas, deixou o atestado na portaria do prédio; já o translado do corpo precisou de um “cafezinho” para agilizar. Nessa, foram logo milão.

A outra filha, como a mais velha fruto do primeiro casamento, foi avisando a família por telefone, enquanto o meu caçula enchia a cara no primeiro boteco que encontrou aberto. Esse menino me preocupa. Sabe aquele negócio de maquiar, enfiar algodão na napa e orelhas, passar baton, vestir o morto?, pois bem: é à parte. O motorista do carro fúnebre ligou, chegaram até rápido; foi sorte, estavam por perto. Sempre em espécie, mais quinhentão. Ao desmaterializar, ganha-se o singular poder de ouvir os pensamentos dos outros, os vivos, de modo que acompanhei a azeda discussão externa e interna sobre a decoração do velório e a escolha do féretro. Minhas filhas pagaram tudo (com os estafermos dos meus genros dando pulinhos), regateando aqui, hesitando acolá, premidas entre os ambíguos sentimentos em relação a mim e o medo de passar vergonha diante da parentada.

Quem não tem dinheiro, ou vontade de gastá-lo com o finado, pode requisitar gratuitamente do poder público uma urna popular, chamada eufemisticamente de modelo standard ― confeccionada num horrendo compensado de madeira e provida de 2 alças que nunca devem ser usadas como tal. É um interessante exemplo de parceria público-privada a atuação das agências funerárias conveniadas aos cemitérios: entre coroas (de flores naturais e artificiais), sala de flores completa, lacre ecológico, paramentos (conforme a religião), véus, velas ¾ e a taxa de sepultamento, mais (para as meninas, menos) três milhetas e meia.

O terno sextavado de madeira que me coube foi um modelo “luxo”, logo acima do standard, mas abaixo do super luxo e distante anos-luz do alto padrão. Este último sim, um objeto de desejo para os ectoplasmas: urna italiana, 6 alças douradas tipo varão, forração acolchoada na caixa e no tampo, travesseiro, babados e sobrebabados em renda, acabamento externo em verniz de alto brilho, opção com e sem Cristo dourado no tampo trabalhado em alto relevo, e visor amplo. O visor, de grande utilidade, permite aquele derradeiro beijo a caminho da cova, sem o incômodo do contato com a carne fria. Vocês talvez nos censurem tais veleidades, mas o fato é que todos dão sua bocada; as coroas e arranjos exibiam secas strelízias, girassóis liofilizados e murchas orquídeas, tangos e gipsofilas. Pétalas de rosas e lírios que deveriam cingir minha rígida figura foram substituídas por popularescos crisântemos; minha mulher, que entende de flores, percebeu e, pudicamente, engoliu mais essa, que havia consumido duzentinhos extra.

A magistratura arraigou em mim o conceito da justiça; embora as pessoas não gostem de ouvir, o certo e o errado existem, assim como existem aqueles a quem compete guiar e exemplar a comunidade. Que estes últimos estejam nas classes superiores e tenham que ser ajudados na tarefa de educar a multidão, causa espécie aos hipócritas. Na única vez em que inverti este proceder, na criação dos filhos, fui muito mal compreendido por minhas filhas, Morgana, a médica, e Cordélia, advogada. O certo é que nunca perdoaram o ter me casado apenas um ano depois de perder a mãe delas para o câncer ― de estômago, como mamãe. Naquela época, eu e meus irmãos fomos distribuídos entre tios e avós; a minha sorte foi tia Mirtes, professora de inglês em Visconde do Rio Branco, ter me dado casa e estudo. Só um irmão veio de Minas para o meu enterro, o pobre veio de ônibus, o que atrasou a bênção final. Quatrocentas razões convenceram padre e coveiro a esperar.

Protegi demais a meu filho, mas porque ele era o mais frágil, o menos preparado para a vida; não agüenta pressão, coitado, voltou a beber agora que se separou, e isto depois da pancreatite que quase o arrebenta de vez. Papai também se acabou na bebida; muitas vezes fico me perguntando se os genes não brincam com nossos destinos. Tudo se repete, tudo volta. Meus últimos anos foram como os primeiros, de muita necessidade e apertura. Estava há dez anos no casarão da Barra Funda, herança da família de Creuza, morando junto com a irmã dela e à espera de sair o inventário de um terreno na Avenida Brasil que poderia nos tirar a todos do cortado. Enquanto tive bens para torrar com ele, Benjamin era papai pra cá, papai pra lá; desde que aquela argentária da mulher e a golpista da filha o jogaram na casa dos velhos, ele logo transferiu os dengos para a mãe. Nem palavra mais me dirigia.

Do lado de cá, as coisas são desorganizadas por demais. Não sei bem como lhes explicar isso, mas acontece que o além-túmulo não tem, assim, como dizer?... uma forma! No éter tudo está a trouxe-mouxe, como que jogado, não há administração, chefia, pessoal encarregado, etc.; é impossível distinguir ordem ou hierarquia, direitos e deveres inexistem, vige uma anarquia meio com cara de abandono. Confesso que esperava receber instruções de Deus, anjo ou demônio, quem sabe um uniforme, sei lá, até mesmo um julgamento serviria. Nada de nada. Espíritos nem bons nem ruins vagam a esmo neste lugar, que não é propriamente um lugar, e se resignam a uma duração que não guarda semelhança com o bom e velho tempo. No começo é angustiante, depois passa, aliás, essa é a única regra fixa por estas bandas: tudo passa. Encontrar familiares, amigos ou mortos ilustres? Só por um grande acaso, que também não ocorreu a qualquer dos meus novos “vizinhos”. Queria tanto encontrar mamãe e tia Mirtes...

Minha neta, filha do Benjamin, se casou há 3 anos e não fui convidado. Acusei o golpe, decaí; o diagnóstico: demência de Lewy. Exames mostraram o meu cérebro coalhado de bolinhas de proteína enovelada, restos dos meus destroçados neurônios. Comecei a variar da cabeça, a falar sozinho; mamãe me aparecia todos os dias. Já não conseguia andar; a prótese de quadril, resultado de um atropelamento criminoso que sofri, desgastara. Ouvi o médico, naquele jargão frio deles, dizer a Morgana na minha frente que já não valia a pena operar. A velha carcaça não pagava mais pule de dez. Como promotor sempre obtive a condenação daqueles que a grita pública exigiu; não sei porquê, ultimamente via nas paredes o rosto de um mendigo atropelado pelo filho de um empresário, rapaz este que alcancei inocentar. Ajudei o amigo, perdi a desembargadura.

Viver vicia. Os mortos só se ocupam do que fazem os vivos, os seus vivos, aqueles que de alguma forma lembram deles ― a mesquinha intriga familiar é o único jogo que motiva os que aqui estão. Porque morrer é entrar no Aleph, o ponto de onde se observam simultaneamente todos os lugares, coisas e pessoas do mundo. Com a nada desprezível vantagem de se enxergar dentro. Porém, com a maior TV a cabo do universo ao dispor, as avantesmas só assistimos ao mesmo triste programa de auditório mundo-cão de antes: a nossa minúscula vidinha. Os fantasmas vão desvanecendo progressivamente, entram numa letargia intermitente; cada vez que alguém ainda chora por ele, lembra dele, com amor ou raiva, toda vez que um neto pergunta quem é aquele da foto, ou do filme caseiro, toda homenagem ou reza em dia de finados, cada pesquisa no Google, produz um evanescente despertar. Ser esquecido é a morte dos mortos.

Sinto uma falta tremenda da Dita, minha cachorrinha; hoje, ela é a única que ainda pensa em mim sem uma ponta de ódio. Cordélia está triste, ainda não sabe que uma melancolia vai cavar um buraco no seu coração durante um ano, mas ela e a irmã vão superar; Creuza também, tem bons sentimentos, a coitadinha. “Colegas” me garantem que a melhor política é o desapego, que não há melhor remédio para o nada vindouro; mas não adianta, quem é senhor de domar o seu próprio eu? Este o busílis: o EU é a criatura de apetite mais voraz que pusemos dentro de nós, exorcizá-lo é que são elas. Funciona como Jesus Cristo: começa dizendo que é irmão, igual a todos nós, depois fala que é Filho de Deus, e acaba por se alçar ao triunvirato com o Pai e a pombinha. Largar de mão desse judeu argentino ― sim, Jesus era argentino, mas é uma história longa demais para começar a contar agora ― que mora dentro de nós é a verdadeira salvação. As almas não são penadas, apenas vão ficando alien(adas).

Deixei uma bomba no meu testamento, mas os meus parentes ainda não sabem. O importante é que fui velado na sala com vista para o vale do Pacaembu do Cemitério do Araçá. Rara naquele inverno chuvoso, uma tarde quente marcou a minha despedida; o pôr do sol banhou a cerimônia de adeus numa luz apaziguadora. Saí dos cafundós de Minas Gerais e venci em São Paulo; meus ossos jazem num belo mausoléu de um dos mais tradicionais campos santos da capital. Estou enterrado no topo da cidade. Meu filho veio, mas não chegou perto da campa. Com o que vi no seu coração posso contar; enquanto ele viver, estarei acordado.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

a vida como ela é...

como já dizia o Nenê Berola, amigo das antigas
“o cão que morde, esquece
o cão mordido, não esquece nunca”

esta é uma lenda de priscas eras, do tempo em que as diligências
sacolejavam na poeira do Velho Oeste
os animais falavam
e os dinossauros ainda se arrastavam sobre a face da Terra

férias escolares, andava aí pelos dezessete, dezoito certamente
que não, pois ainda não votava, mas nessa época ninguém votava
só que essa é outra história; vai que fui pra Bahia
na boleia de caminhão

a namorada não quis, ou não pode, ou havia um programa
na família; resultado: não foi comigo
escalei o amigo Tonho Brown, outro das antigas

bicho (como se dizia naquele então), eu tava amarradão
a brota era papo firme, cabeça feita; olhava, sentia e pensava
o mundo como eu

me explico: não quero dizer que ela pensava igual
a mim, mas que tinha sacadas próprias, originais, não tinha
aquela velha opinião formada sobre tudo

ah, Morro de São Paulo, casa de pescador, banho de latão
praia de manhã, PF uma vez por dia e forró à noite até o dia
clarear ― mamão com açúcar

Tonho ficou injuriado comigo nos rasta-pés: mulherio
chegando junto e eu só saindo de lado, jogando na retranca
cobrindo a zaga, afinal, tava paradão na mina

“Escuta, se é pra você ficar aí de vacilão, vou te contar...”
e por aí ele foi: arrodeou, pigarreou, enrolou, mas desembuchou
que tal e cousa e lousa e maripousa ― tinha furunfado com a mina

a minha mina! e o pior é que não foi vez
foram vezes! daí só deu Maysa na vitrola do coração
meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar...

saí da função cuspindo infâmias, que ele não era amigo
coisa nenhuma, um traíra, duas-caras, pústula!
(essa eu tinha acabado de aprender num folheto)

a viagem tinha acabado, saí do recinto pisando duro
degustando o fel da crocodilagem, ruminando o veneno da perfídia
rumo do barraco do pescador, Gonçalo, baiano sangue-bom

encontrei o Gonça num boteco e despejei-lhe minh’alma
ferida de Otelo paspalhão;
arreganhando os belos dentes de imaculado branco

Gonçalo me conta a saga de seu último infortúnio
a burguesinha veio, se hospedou na sua humilde
cabana e dividiram cama, mesa e sonhos

jurou-lhe eterno amor, despediu-se em lágrimas, suplicou
que viesse para o Sul Maravilha, dormiria na edícula
da casa dos pais, até arranjar situação

“pois é, meu rei, não teve mole pra mim, não
fui parar num cortiço em Sampa e, do sanduíche
de mortadela, só vi foi o dormido pão”

a gata já tinha se ligado em outro, burguesinho como ela
Damares fez dele gato-sapato, jogou ele abaixo de cão
“pe-pe-peraí Gonçalo, Damares?, mas, mas...”

você já adivinhou?, que ela era ela e o outro era eu?
Gonçalo se virou para o dono do estabelecimento
“Josafá, bote aí uma dose de amansa corno pra nós
mas capriche, que o caso é grave!”

Tonho se juntou a nós e daí não lembro mais nada
só que terminamos a noite encachaçados até à alma
no único orelhão da ilha, berrando para o pai dela
“por favor acorde ela, é caso de vida ou morte”

“você quer me explicar que palhaçada é essa?”
“Damares, não fica brava, nós só te ligamos
pra dizer que a gente te ama pra caraaaalhoooo!”

é o que eu sempre digo:
enquanto não der o sinal,
ainda é recreio

sábado, 17 de julho de 2010

O Jogo da Gata-Parida

Mesmo com a razoável habilidade para desenhar que sempre tive, não consegui acrescentar nada à descrição que consta no boletim de ocorrência: branco, altura média, olhos e cabelos castanhos, nenhum sinal característico. Mais inexplicável é o que aconteceu com o rosto desse sujeito que ficou quase uma hora comigo: por mais que me esforce, não lembro de nenhum traço, ao mesmo tempo em que não consigo esquecê-lo. Sonho com uma face sem marcas, a testa normal, sem sobrancelhas grossas demais, nem um nariz torto, ou um queixo menor do que deveria; freqüentemente me aparece uma máscara de olhos vazados como nos filmes do homem invisível ― e acordo molhado de suor frio, o coração alvoroçado, ainda ouvindo aquela voz que também não me sai da cabeça.

Passados seis meses, meus agressores ainda me visitam todas as noites. É um mistério, um quebra-cabeças que não atinjo resolver ― não lembrar e também não conseguir esquecer. Vá entender essas coisas.

Fazia dois anos que o meu nome integrava a lista de profissionais fixos da Dental Care, clínica de clareamento dentário para chiques, abonados e famosos. A clientela VIP, as constantes aparições na mídia, as diversas unidades franqueadas, o instituto beneficente para crianças que os sócios divulgam no país todo, enfim, tudo isso fez e faz da DC a meca dos odonto-cosmetologistas. De fato, há um tanto de maldade e outro tanto de verdade nessa denominação, os produtos clareadores corroem essa camada mais externa que é o esmalte; quer dizer, procuro não pensar que estou prejudicando a saúde futura da dentição dos meus clientes, mas que os estou ajudando na questão da imagem e da baixa auto-estima. Além do quê, dei um duro danado para fazer parte de uma estrutura sólida e altamente profissional ― e isso ninguém diz.

Sexta pré-feriado, final de tarde, dispensamos as secretárias mais cedo porque havia um congestionamento-monstro na cidade devido ao Tiradentes que caía na segunda. Só restavam três profissionais e um cliente na clínica; eu mesmo já não estava atendendo e fazia uns telefonemas de acerto de agenda para a semana seguinte. A minha colega me chamou pelo ramal interno à sala dela, achei que ela ia me consultar sobre alguma retração gengival no cliente que estava em atendimento ou algo assim; não podia estar mais distraído quando entrei no conjugado vizinho e dei de cara com dois sujeitos de pé, um deles me apontou imediatamente a arma e anunciou o assalto, enquanto o outro remexia as gavetas e a minha colega, completamente aparvalhada, jazia sentada na própria cadeira de trabalho.

Resumindo: eram quatro bandidos, enquanto três deles saíram com as minhas duas colegas no carro insulfilmado de uma delas para sacar dinheiro em caixas eletrônicos, o outro ficou lá comigo.

Até aí me sentia seguro, os caras demonstraram muita segurança e não pareciam drogados nem tensos. Conheciam detalhes do funcionamento da clínica, tanto que sabiam que uma das meninas era também administradora e estava com o cartão da empresa; entregamos todo o dinheiro que havia em caixa e eles ainda embalaram alguns antibióticos, materiais e aparelhos que tinham valor de mercado. Quadrilha especializada, disse a polícia. Um deles se passou por cliente, fez orçamento e marcou o último horário de sexta. Comunicavam-se por rádio, eu fiquei como garantia de que elas não iam tentar nenhuma besteira; qualquer erro, eu pagaria com a vida. As regras estavam postas.

O “meu” bandido me levou para a sala de reuniões, era lá que a equipe se reunia e onde também eram filmadas as eventuais entrevistas; havia ali uma tela, data show, mesa ampla para cursos e palestras, estantes de madeira clara e fotos em preto e branco enquadradas nas paredes. Nunca mais voltei a entrar nesta sala. Para matar o tempo, o sujeito começou a brincar comigo: largou a arma numa das cadeiras anatômicas, girando o assento para fora da mesa. ― É tipo uma dança das cadeiras... ― disse, com aquela cara de nada.

― Um joguinho pra passar o tempo, doutor, presta atenção, ele tem três partes: a primeira parte se chama “jogo da gata-parida”. Como o senhor deve saber, as gatas prenhas precisam de um lugar seguro quando vão parir, elas buscam uma toca onde a ninhada fica escondida, precisam do melhor assento... como nós dois aqui... Doutor, doutor, o senhor não está me ouvindo...

Ele tinha razão, não conseguia tirar os olhos da arma sobre a poltrona giratória. Foi até lá, destravou a pistola e voltou a se afastar.

― Esta é uma ponto-três-oito-zero, automática, assim como deixei ela, é só pegar e apertar o gatilho, não tem erro: o senhor só precisa ser mais ligeiro que eu... ― afastou-se ainda mais e ficou numa das pontas da mesa me encarando. ― Mas vou ser justo e lhe avisar que nunca perdi neste jogo. Aqui, dentro do seu consultório, sou eu que tô na desvantagem da gata, não acha?...

Dei uma olhada para a minha barriga, tenho trinta e quatro anos, pratico tênis desde os dez; é verdade que uma barriguinha começa a despontar na minha silhueta, mas o fato é que me encontrava bem mais próximo da arma do que ele. Ninguém conseguiria ser tão rápido; avaliei que dava tempo de chegar à cadeira, empunhar o trabuco e dominar a situação. Dei um salto e catei a arma, que tremia na minha mão. Ele nem se mexeu. Não fiz exército, nunca tinha pegado uma arma de fogo de verdade na mão.

― Muito bem. Agora vem a segunda parte do jogo, chama-se “rato-ou-leão”; doutor, não adianta ter o poder, é preciso estar pronto pra usar... agora vamos saber o que senhor é... ― começou a caminhar, bem devagar, na minha direção.

― Pára aí, não quero atirar! ― me espantei ao me ouvir berrando. Não queria mesmo disparar, mas ele continuava a vir na minha direção, com ar de sonso. Mirei nas pernas: ― Click-click-click! ― Descarregada! O resto da cena passou-se numa velocidade inacreditável.

― Então é leão, né, seu rosca? Sabe o que me incomoda em gente que nem você? É que vocês não ouvem quando a gente fala, te disse que nunca perdi essa parada e não adiantou nada, né? Você nem quis saber como é se chamava a última parte do jogo, sabe como chama? Sabe ou não? ― ele me pegou pela gola da camisa junto com um tufo de cabelos, empurrou minha cabeça na mesa e encostou o cano de outra arma na minha têmpora enquanto berrava na minha orelha.

― Não, não sei... pelo amor de Deus, não atira!...

― Chama “tenho cara de otário, tenho”? Escuta aqui, acha que eu ia dar esse mole prum coxinha como você? Só você é que é esperto, é? Se as tuas amigas der vacilo, te queimo seu filha da puta!... morou?, entendeu agora quem está no comando aqui?